3. Características do primeiro cinema pág. 11

Considera-se que os primeiros dramas de ficção com razoável duração e com um esboço mínimo de “história” foram as “Paixões”, encenações da vida de Cristo através de quadros, como no ritual religioso da Via Sacra ou nos “mistérios” medievais. Todas as versões da “Paixão” filmadas entre 1897 e 1907 consistem num encadeamento de tableaux vivants (quadros vivos), separados por cartelas de intertítulos, tais como: “Anunciação de Nossa Senhora”, “Adoração dos Reis Magos”, “Fuga para o Egito” e assim por diante. Esses filmes introduzem no cinema a noção de sucessão (a história não se esgota num só quadro, ela continua de um quadro a outro) que será o germe da nova forma narrativa, fundada na concatenação de quadros diferenciados.

Mas não é por acaso que a primeira história encenada numa sucessão de quadros seja justamente uma passagem bíblica: como se trata de uma narrativa universalmente conhecida (pelo menos no mundo cristão), esse fato permitiu aos realizadores apresentar um espetáculo de longa duração, feito de tableaux vivants cuja relação de concatenação não precisava ser explicada, pois era notoriamente conhecida por todos. De fato, se dependesse exclusivamente dos meios utilizados no filme, a sucessão de quadros não poderia revelar qualquer sentido narrativo, já que as imagens não comportavam marca alguma de concatenação capaz de “amarrar” os quadros entre si. Para um espectador que ignorasse inteiramente a tradição cristã, a ordem dos quadros poderia perfeitamente ser trocada ou invertida e a sucessão permaneceria enigmática da mesma forma.

A forma narrativa da “Paixão” era ainda muito rudimentar e não sugere sequer remotamente o que se viria a entender por narrativa cinematográfica no período seguinte. Na verdade, a “Paixão” condensa em sua forma rígida tudo aquilo que acabou por se tornar a marca distintiva do primeiro cinema: encadeamento descontínuo de vários quadros sucessivos, que funcionam cada um deles como um tableau (quadro) autônomo e se sucedem uns depois dos outros de forma mais ou menos arbitrária, separados por imensas elipses ou cortes temporais. O motivo, a temática dessas “Paixões” podem ser religiosos, mas a sua estrutura segue o formato dos espetáculos de vaudeville, com seus números autônomos e seus elementos expressivos considerados sempre de forma isolada.

Vaudeville

Para que se possa ter ideia da diferença dessa forma narrativa, basta dizer que, na época, a “Paixão” não era considerada um “filme”, mas um conjunto de filmes. Cada quadro (como “A Multiplicação dos Pães” ou “A Crucifixação”) era vendido separadamente, como um “filme” independente. O exibidor comprava os quadros que quisesse e montava a “Paixão” à sua vontade. Não era difícil que uma exibição dessa espécie mostrasse quadros comprados de fornecedores diferentes, com distintos atores fazendo o papel de Cristo em cada segmento. Além disso, os produtores e exibidores de “Paixões” aumentavam o seu estoque de quadros a cada ano, de modo que qualquer sessão desse gênero era sempre diferente das outras e era diferente também em épocas diversas. E se considerarmos ainda que os quadros das “Paixões” podiam ser exibidos juntamente com quadros de outros filmes e com outros números de vaudeville, pode-se facilmente concluir que a ideia de uma unidade narrativa amarrando todos esses quadros estava longe de encontrar um terreno fértil de germinação.