Na verdade, o cinema foi “inventado” mais ou menos às cegas, na base do método empírico da tentativa e erro, pois desde os seus primeiros protótipos experimentais, ele esteve apoiado num suporte teórico equivocado. Isso só vem demonstrar que as máquinas podem funcionar mesmo quando as teorias em que se baseiam são equivocadas. De fato, todas as pesquisas científicas que se praticam no século XIX e que vão desembocar em máquinas de análise/síntese do movimento exploram e aprofundam um fenômeno que se supunha básico para o princípio do cinema: a persistência da retina, ou seja, esse “defeito” que têm os olhos de reter durante algum tempo a imagem que é neles projetada. Como se sabe, o físico belga Joseph Plateau teve papel decisivo na resolução do dispositivo cinematográfico ao relacionar a persistência da retina com a síntese do movimento. Para demonstrar suas teorias, Plateau construiu um dispositivo de sintetização do movimento chamado fenaquistiscópio (do grego phenax + scopein = visão ilusória), de onde iria derivar o cinematógrafo de Lumière e dos outros supostos “inventores” do cinema.
O que faz o fenaquistiscópio basicamente é sintetizar o movimento a partir de uma sequência de imagens fixas. Nele, temos um disco dividido em iguais segmentos, como os raios de uma roda, separados todavia por fendas. Em cada “raio” do disco, do lado de dentro da circunferência, há um desenho mostrando uma determinada posição de uma sequência de movimentos (por exemplo, uma garota pulando corda). Olhando para esses desenhos, através das fendas do disco em rotação, pode-se reconhecer neles não mais as várias fases do movimento, mas uma única imagem animada. Para Plateau, o movimento surgia porque a pós-imagem fixada na retina preenchia as interrupções realizadas pelos raios do disco, fundindo entre si os vários desenhos sucessivos.
Mas o fenômeno da persistência da retina nada tem a ver com a sintetização do movimento: ele constitui, aliás, um obstáculo à formação das imagens animadas, pois tende a superpô-las na retina, misturando-as entre si. O que salvou o cinema enquanto aparato técnico foi a existência de um intervalo negro entre a projeção de um fotograma e outro, intervalo esse que permitia atenuar a imagem persistente que ficava retida pelos olhos. O fenômeno da persistência da retina explica apenas uma coisa no cinema, que é o fato justamente de não vermos esse intervalo negro. A síntese do movimento se explica por um fenômeno psíquico (e não óptico ou fisiológico) descoberto em 1912 por Wertheimer e ao qual ele deu o nome de fenômeno phi: se dois estímulos são expostos aos olhos em diferentes posições, um após o outro e com pequenos intervalos de tempo, os observadores percebem um único estímulo que se move da posição primeira à segunda. Isso significa que o fenaquisticópio, que Plateau construiu para demonstrar a sua tese da persistência da retina, na verdade explicava o fenômeno phi, ou seja, uma produção do psiquismo e não uma ilusão do olho. Mas, por um paradoxo próprio da cinematografia, se o fenômeno da persistência da retina não diz respeito ao movimento cinemático, ele é todavia uma das causas diretas de sua invenção, pois foi graças às indagações (equivocadas) em torno desse fenômeno que nasceram as máquinas de análise/síntese do movimento.
Se encararmos o cinema como um sistema particular de recursos expressivos em que se tem, de um lado, a sintetização do movimento através da rápida exibição de imagens fixas separadas e, de outro, a projeção dessas imagens numa tela branca instalada dentro de uma sala escura, com o respectivo acompanhamento sonoro, para uma grande audiência, naturalmente devemos incluir em tal categoria não apenas os arrepiantes espetáculos de fantasmagoria do belga Étienne-Gaspard Robert (apelidado Robertson), não apenas os extraordinários desenhos animados de longa metragem do Teatro Óptico do francês Émile Reynaud, mas também a tradição inteira da lanterna mágica. Na Inglaterra, por exemplo, os primeiros e mais importantes “cineastas” que produziram trabalhos especificamente para o cinematógrafo, como Cecil Hepworth, Georges Albert Smith e James Williamson, haviam sido anteriormente lanternistas ou, na pior das hipóteses, descendentes de famílias de lanternistas. Isso explica uma certa “precocidade” do cinema inglês, ou seja, uma sabedoria muito particular dos pioneiros ingleses para lidar criativamente com elementos da retórica e da sintaxe cinematográficas num período em que o cinematógrafo mal tinha surgido. Na verdade, homens de cinema como os acima citados jamais viram qualquer novidade no cinematógrafo. Projecionistas e criadores de placas para lanternas mágicas, eles já estavam familiarizados com a técnica de construir narrativas áudio-visuais. O cinema de forma alguma aparecia para eles como um meio de expressão e uma forma de espetáculo novos, mas tão-somente como um incremento (mais um entre tantos que surgiam todos os dias) dos recursos expressivos da lanterna.
Não por acaso, o historiador norte-americano Charles Musser chega mesmo a defender a ideia de que não existe, na verdade, uma história do cinema que começa, por exemplo, em 1895, mas uma história das imagens em movimento projetadas em sala escura, que remonta, pelo menos no Ocidente, a meados do século XVII, com a generalização dos espetáculos de lanterna mágica. O cinema, tal como o entendemos hoje, não seria senão uma etapa dessa longa história. Se considerarmos que as placas das lanternas já incluíam, desde pelo menos o século XVIII, mecanismos engenhosos para simular o movimento das figuras na tela (acionados por manivelas ou outros dispositivos cinéticos), recursos de transformação e sobreposição de fontes de luz para produzir fusões e dissolvências, técnicas sofisticadas de roteiros para transformar histórias orais ou escritas em sequências de imagens, sincronização dessas imagens com voz e som, se considerarmos ainda a existência de um público potencial frequentador desses espetáculos, instituições encarregadas de promovê-los e até mesmo a produção semi-industrial de placas transparentes para distribuição em larga escala, devemos forçosamente concluir que o cinematógrafo dos Lumière e de seus outros colegas não chega a representar propriamente uma novidade, uma virada na história dos meios expressivos do homem. Tanto isso é verdade, que nos primeiros anos do cinematógrafo era muito comum que as sessões de “cinema” fossem mistas, com a utilização simultânea de película cinematográfica e placas transparentes. Estas últimas continuaram a ser utilizadas no cinema durante muito tempo, sobretudo para incluir títulos, intertítulos e avisos durante a projeção.
Na virada do século XIX para o XX, o cinema provou que era uma invenção com um longo passado e com bastante futuro. O seu futuro, porém, não estava na linha visualizada por Plateau e Marey como uma ampliação do instrumental analítico do cientista. Pelo contrário, Lumière e Méliès, ou seja, aqueles que preconizaram a síntese do movimento através da projeção na sala escura, deram a linha dominante. Supunham os intelectuais do século XIX que o cinema seguiria a fotografia na sua função de “registro” documental, mas foi o contrário que aconteceu. O novo sistema de expressão, assim que ganhou forma industrial, impôs-se esmagadoramente como território das fantasias do imaginário, mantendo-se fiel aos seus ancestrais mágicos pré-industriais.
O poder da sala escura de revolver e invocar nossos fantasmas interiores repercutiu fundo no espírito do homem de nosso tempo, este homem paradoxalmente esmagado pelo peso da positividade dos sistemas, das máquinas e das técnicas. Antes mesmo que o capital financeiro disciplinasse os seus mergulhos nas regiões mais obscuras do espírito, antes mesmo que ele resultasse numa próspera indústria da cultura, o cinema já era visto como um local suspeito, onde alguma espécie de iniquidade corrosiva ameaçava se insinuar por toda parte. Arte do simulacro, da aparência, verdadeiro império dos sentidos, para onde uma população inicialmente marginalizada e ofendida acorria em bandos em busca de evasão e refúgio, ele fará o necessário contraponto de trevas a uma época de ofuscamento racional. Mesmo depois do seu enquadramento civilizante, sob o ferro de uma certa ética protestante, nas mãos de Griffith e seus contemporâneos, o cinema ficará para sempre marcado pelas suas obsessões iniciais e nunca se fará capaz de exorcizá-las ou sublimá-las inteiramente.