1. Quando nasceu o cinema? pag. 3

Vejamos os casos de Étienne-Jules Marey e Eadweard Muybridge, homens de ciência cujos nomes têm sido tradicionalmente associados à invenção do cinema. O primeiro deles, um fisiologista francês cujas pesquisas sobre o movimento animal o acabaram conduzindo de forma inesperada ao cinema, foi um crítico implacável desse meio de comunicação e nunca entendeu exatamente para que poderia servir a síntese do movimento através do aparelho projetor. Marey, que foi o inventor do cronofotógrafo e do fuzil fotográfico, dois ancestrais da câmera cinematográfica, estava interessado apenas na análise dos movimentos dos seres vivos e para isso ele necessitava decompô-los, congelá-los numa sequência de registros. Uma vez decompostos os movimentos dos animais, era possível estudá-los em detalhe, mas recompô-los novamente numa tela, para fazer a imagem do animal “se mover”, era para ele uma total idiotice. Não era mais fácil olhar diretamente para o próprio animal?

Homem de ciência, positivista de formação, Marey só conseguia se interessar pela primeira parte do processo cinematográfico, a análise/decomposição dos movimentos em instantes congelados, não vendo qualquer interesse científico no estágio seguinte, a síntese ou reconstituição dos movimentos através da projeção na sala escura. Nesse ponto, ele coincidia com Muybridge, pesquisador que conseguiu registrar pioneiramente, em instantâneos separados, o galope de um cavalo e foi depois contratado pela Universidade da Pennsylvania para continuar seus experimentos com a decomposição do movimento.

Fuzil fotográfico de Marey
Muybridge estudou os movimentos de vários animais através da análise de suas diversas fases

Todos esses homens de ciência são menos os pais do cinema do que da produtividade industrial, da racionalização da linha de montagem, da ergonometria e da robótica. Estudos como os de Marey e Muybridge permitiram tornar mensurável a força ou o gesto humano e assim exercitar uma melhor utilização do trabalho, no sentido de otimizar o seu rendimento. Marey chegou a ser solicitado pelo Ministro da Guerra para presidir uma comissão destinada a rever os programas franceses de treinamento militar, com base nas novas conquistas da fisiologia e da cronofotografia. Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar menos o espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os futuristas, como se sabe, utilizaram a cronofotografia para cantar as belezas do movimento e da velocidade, enquanto um dadaísta como Marcel Duchamp travou contato direto com as experiências cronofotográficas (seu célebre quadro Nu Descendo a Escada, um dos marcos da arte moderna, é uma citação explícita do método de Marey). 

Nu Descendo uma Escada, nº 2Marcel Duchamp, 1912, França.
Philadelphia Museum of Art – Collections Object : Nude Descending a Staircase (No. 2): www.philamuseum.org

Por outro lado, porém, ilusionistas como Reynaud e Méliès e industriais ansiosos em tirar proveito comercial da “fotografia animada”, como Edison e Lumière, estavam mais interessados no estágio da síntese efetuada pelo projetor, pois era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de espetáculo, capaz de penetrar fundo na alma do espectador e mexer com os seus fantasmas. Nem é preciso dizer que foi esta a posição que prevaleceu junto ao público, esse público inicialmente maravilhado com a simples possibilidade de “duplicação” do mundo visível pela máquina e logo em seguida deslumbrado com o universo que se abria aos seus olhos em termos de fuga ao onírico e ao desconhecido. Na verdade, esse era exatamente o cinema que estava no horizonte dos mágicos, videntes, místicos e charlatões, que durante todo o século XIX fascinaram multidões em estranhas salas escuras conhecidas por nomes exóticos como Phantasmagoria, Lampascope, Panorama, Betamiorama, Cyclorama, e inúmeros outros “ramas”, nas quais se praticavam projeções de sombras, de transparências e até mesmo de fotografias, sejam elas animadas ou não. Certamente, o que atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de conhecimento ou de compreensão do mundo, mas a possibilidade de realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário. Perspectivas, nem é preciso dizer, inteiramente descabidas dentro dos propósitos de homens de ciência como Marey e seus colegas.