6. O cinema de vanguarda pag. 36

Os filmes anti-burgueses do período vanguardista seguem o modelo de Entr’acte, com maior ou menor radicalidade. L’Etoile de Mer (A Estrela do Mar/1928), por exemplo, dirigido por Man Ray, a partir de um poema de Robert Desnos, traz à cena algumas imagens de fundo psicanalítico, sugestões vagas de perversões sexuais, distorcidas por espelhos ou filtros deformantes. Mas o grande escândalo do período será mesmo o filme de estreia do catalão Luis Buñuel, Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz/1929), realizado em parceria com o pintor surrealista espanhol Salvador Dali.

L’Etoile de Mer (A Estrela do Mar/1928)

Un Chien Andalou é o mais freudiano de todos os filmes do período mudo e também um dos filmes mais poéticos de todo o cinema. Ele é construído como se fosse um pesadelo, onde imagens desconexas e perturbadoras emergem diante de nossos olhos, depois de terem sido arrancadas diretamente do inconsciente. Do ponto de vista narrativo, o filme não conta nenhuma história em particular e a única coisa que amarra todos os planos é o fato dos atores serem os mesmos em todos eles.

Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz/1929)

Tudo se mostra ambíguo e incerto durante todo o fluxo das imagens. Nunca se sabe bem que tipo de relação os personagens mantêm entre si. Tempo e espaço se apresentam vagos e indiscerníveis. Uma personagem feminina abre a porta de sua casa, em pleno centro de Paris e sai para fora, mas “fora” já não é mais Paris e sim uma praia deserta. Metáforas de fundo psicanalítico irrompem a todo momento no meio do caos das imagens: ora pode ser uma mariposa com uma caveira espetada nas costas, ou uma mão decepada e guardada dentro de uma caixinha de música, ou ainda um piano arrastado por um homem, com um cavalo morto sobre as teclas e dois bispos amarrados pelo pescoço. Os intertítulos pouco ajudam no entendimento da “história”. Cartelas com as inscrições “Era uma vez…”, ou “Oito anos mais tarde”, ou ainda “Por volta das três horas da manhã” apenas reforçam o contexto obscuro onde se passam os eventos. No final, os dois amantes do filme aparecem mortos, com os corpos nus enterrados na areia até a altura dos ombros e os vermes já começando a devorá-los.

Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz/1929)

Antes de Un Chien, os filmes de vanguarda pareciam mais frequentemente travessuras de garotos rebeldes. O espírito geral da maioria desses filmes era a paródia, pois o que eles visavam era sempre dessacralizar os valores nobres ou sagrados, transformando tudo em motivo de riso. Un Chien, entretanto, muda o tom. Nele não há mais nada para rir; pelo contrário, o filme é inteiramente perturbador e chegou mesmo a ser descrito por seus realizadores como “um convite passional e desesperado ao suicídio”. Já a primeira imagem do filme, que mostrava uma navalha cortando um olho em primeiríssimo plano, provocou um dos maiores sustos da história do cinema. A sequência ilógica de incômodas imagens, que o filme faz desfilar diante dos olhos do estupefato espectador dos anos 20, parece guardar uma estreita relação com os processos internos de elaboração dos sonhos, tal como descritos por Freud em sua obra Interpretação dos Sonhos. Impulsos sexuais reprimidos parecem aflorar o tempo todo, transformados todavia em imagens enigmáticas, que causam espanto e estupefação. E antes que os espectadores pudessem se recompor da agressão de Un Chien, Buñuel ainda provocaria mais um escândalo, desta vez com o seu anticlerical e anti-religioso L’Age d’Or (A Idade do Ouro/1930).