7. A vanguarda soviética pag. 43

Vertov foi o mais radical de todos os cineastas soviéticos do período da vanguarda histórica. Para ele, o regime narrativo em voga havia imposto ao cinema um conjunto de regras e fórmulas solidárias com um tipo de visão que não poderia mais corresponder à nova visão do homem socialista. Na tentativa de inventar um cinema mais adequado ao contexto revolucionário, Vertov vai atacar até Eisenstein, por considerar que este último não rompia, no essencial e até às últimas consequências, com os modelos de Hollywood.

Apenas modernamente, entretanto, os filmes de Vertov começam a ser apreciados em toda sua amplitude. Durante muito tempo, eles foram encarados mais como uma pirotécnica futurista, pois o grau de ruptura com os modelos conhecidos de cinema era tão grande que eles resultavam quase ininteligíveis. Antes de mais nada, o alvo principal dos filmes de Vertov era a linearidade introduzida pelos métodos americano e inglês de decupagem. Essa linearidade seria contestada por Vertov em todos os seus níveis.

Examinemos o seu filme mais importante: Tchelovek s Kinoapparatom (O Homem da Câmera/1929). Esse filme não foi concebido para ser visto uma única vez. É impossível assimilar toda a sua complexidade numa única olhada. Mais do que qualquer outro filme, Tchelovek exige que o espectador assuma um papel ativo como decodificador de suas imagens. Os relacionamentos propostos para os seus múltiplos planos raramente são evidentes por si sós. Com muita frequência, a lógica das significações sucessivas se move tanto para frente quanto para trás, negando nosso senso usual de cronologia. Na verdade, cada plano desse filme não se relaciona apenas com o seu antecedente e o seu sucessor, mas com todos os demais planos do filme. Às vezes, só vamos entender a ocorrência de um plano várias dezenas de minutos depois, quando outras imagens colocadas muito mais à frente vierem a localizá-lo no tempo e no espaço. Pode­ se dizer que não há uma única tomada nesse filme inteiro cujo lugar no esquema de edição não esteja determinado por todo um conjunto de cadeias entrelaçadas de significações e que é impossível decifrar inteiramente o seu discurso enquanto não se tiver uma visão completa da obra como um todo, ou mais precisamente depois de várias visualizações. Resolutamente reflexivo, esse filme foi – conforme novamente o crítico Noel Burch – o gesto mais radical que o cinema mudo conheceu – tanto na Rússia como em qualquer outro lugar do mundo.

Tchelovek s Kinoapparatom (O Homem da Câmera/1929)

Mas é sobretudo na detalhada elaboração dos processos de filmagem e de montagem, projeção e visualização que Vertov realiza essa profunda imbricação entre os planos. Ao longo do filme, tomamos contato com várias temáticas entrelaçadas – o ciclo de um dia de trabalho, o ciclo da vida e da morte, uma reflexão sobre a nova sociedade, sobre a situação da mulher nela, sobre vestígios de vida burguesa e de pobreza sob o socialismo – mas, ao mesmo tempo, vemos o próprio trabalho de filmagem e montagem, além de também cenas de sua primeira exibição pública. O processo é verdadeiramente vertiginoso: vemos, por exemplo, um grupo de elegantes senhoras passeando em uma charrete, seguidas à distância pelo cinegrafista. De repente, o galope do cavalo é congelado no ar e notamos então que estamos agora numa sala de montagem, onde a montadora escolhe o novo plano para associar àquele. Tínhamos visto, há alguns minutos atrás, uma jovem camponesa no mercado. Agora estamos revendo aquele plano, mas no visor da mesa de montagem. Um pouco mais tarde, a mesma imagem aparecerá projetada numa tela dentro da nossa tela, para os primeiros espectadores maravilhados. E assim vai o filme, negando todo e qualquer senso convencional de cronologia.

Em outras palavras, os processos de filmagem, montagem e projeção são revelados ao espectador e incorporados através de uma complexa montagem paralela. Isso produz uma sucessiva subversão e restauração da ilusão fílmica. Por exemplo: na penúltima sequência do filme, há uma alternância entre a imagem de um ciclista pedalando sua bicicleta e a imagem da sala de projeção em cuja tela é projetada aquela imagem. A oscilação entre a ilusão experimentada e a ilusão revelada é uma das molas propulsoras do filme. Dessa maneira, Vertov rompe com os processos de identificação e de alucinação do espectador, colocando em crise, a todo momento, a ilusão cinematográfica.

Além disso, ele transforma a própria câmera em “personagem” principal do filme e desvela o tempo todo a mediação que esta produz entre nós e o mundo. Através de vários procedimentos formais (como congelamentos de imagem, câmeras lentas e aceleradas, animação de objetos inanimados através do método do quadro-a-quadro etc.), o cineasta intervém sobre o fluxo das imagens para desmistificar a pretensa “objetividade” da imagem cinematográfica e revelar uma realidade invisível a olho nu. Dentre essas técnicas, uma das mais requisitadas é o retrocesso do movimento (a filmagem ao contrário: do fim para o começo). Em seu filme Kino Glaz: Jizn Vrasplokh (Cine Olho: a Vida ao Improviso/1924), por exemplo, Vertov inverte o processo de produção da carne, do açougue ao matadouro, para mostrar a superioridade do sistema de distribuição das cooperativas. Dessa forma, o truque, em vez de promover a ilusão, produz o efeito contrário.

Kino Glaz: Jizn Vrasplokh (Cine Olho: a Vida ao Improviso/1924)