5. A contribuição de Griffith pag. 31

Há um movimento, na obra de Griffith, que começa com uma intensificação do processo de fragmentação narrativa já em curso, que radicaliza esse processo com a montagem alternada de ações paralelas, mas que vai aos poucos tomando consciência do “artifício” da montagem e procurando dissimulá-lo através dos efeitos de continuidade. De fato, o Griffith da fase Biograph joga toda a ênfase no corte, na interrupção da ação, numa certa descontinuidade que, em certa medida, atira a atenção do espectador sobre o trabalho da montagem. Numa fase posterior, desponta nele uma certa preocupação em atenuar ou ocultar esse exagero da fragmentação, em nome de um ganho de verossimilhança. Aos poucos, Griffith vai se dando conta de que a aparência naturalista do filme está fundada numa habilidade de dissimular a descontinuidade e a fragmentação geradas pela montagem. Na verdade, só nos anos 20 as regras de continuidade serão plenamente estabelecidas, quando então os cineastas (sobretudo em Hollywood) começarão a ver como “problemas” coisas como a inversão dos movimentos entre um plano e outro, o corte com quebra da continuidade da ação ou da direção dos olhares etc. O período mais fértil de Griffith (os anos 10) é ainda um período de transição, em que esses “problemas” começam a ser sentidos, mas ainda não se tem controle total sobre eles. A narrativa de Griffith, portanto, ainda não é inteiramente homogênea e unitária, ainda produz rupturas e descontinuidades, algumas vezes propositais, como ocorre em lntolerance.

lntolerance

Mas o que importa é verificar que a maior contribuição de Griffith foi conseguir orquestrar os fragmentos chamados planos com uma tal habilidade, que eles resultam coerentes para a experiência perceptiva do espectador. Muitos autores – como, por exemplo, Tom Gunning – atribuem essa coerência ao estabelecimento da noção de narrador dentro da obra de Griffith. O narrador seria a mediação necessária (quando se fragmenta a narrativa) entre a representação inscrita nos diferentes planos e o público, ou em outras palavras, aquela entidade invisível que organiza a matéria fílmica e lhe dá uma forma de apresentação ao espectador. Através da hábil seleção das durações, dos campos e dos ângulos de visão, o narrador torna possível ao espectador, num certo sentido, “entrar” dentro do universo narrativo e de circular dentro dele como um observador privilegiado, que vê sem ser visto. O narrador perfura as paredes para mostrar ao espectador o que acontece lá dentro, faz o espectador sobrevoar a ação com sua vista de pássaro, corre em alta velocidade junto com as carruagens e os cavalos, permite voltar ao passado para buscar um detalhe esquecido e até mesmo entrar no interior de um personagem para ver com seus olhos e experimentar a ação sob seu ponto de vista.

O momento mais acabado da evolução de Griffith nós o vamos encontrar na célebre sequência do tribunal em lntolerance. Aí o processo de linearização narrativa pode-se considerar acabado, pelo menos nos seus princípios gerais. Há um único plano geral, abrindo a sequência. A partir daí, a situação é desmembrada em vários planos aproximados de curta duração que descrevem o ambiente: a audiência, o júri, os guardas, o juiz, o réu… Começa a ação: o promotor faz a acusação e mostra a arma do crime. O rapaz, em plano americano, contesta a acusação. Frisson na plateia. Um primeiro plano do rosto da verdadeira assassina, na plateia, flagra o sentimento de culpa e as reações de remorso. Outro close: a mulher do acusado faz pequenos gestos de encorajamento ao marido. Corte, contracampo, o marido, num outro close, a descobre na multidão e retribui com o olhar o seu gesto de solidariedade. Plano de detalhe das mãos aflitas da mulher, contorcendo-se diante da expectativa do pior. Toda a evolução do julgamento vai se espelhando no rosto da mulher, que reage às mínimas palavras, ao menor gesto ameaçador. A sequência do tribunal é construída a partir de um rosário de fragmentos: o todo é sugerido por uma hábil seleção de detalhes, graças à disposição dos dados essenciais na ordem que a instância narradora considerou mais expressiva e mais significante. A perfeita disposição dos dois protagonistas principais – a mulher dirigindo-se à esquerda e o marido à direita do quadro – constitui o par de planos contrapostos chamado campo/contracampo, já então reconhecido como a forma básica para representar o direcionamento da ação entre os personagens. Assim, malgrado marido e mulher estejam afastados fisicamente um do outro no espaço do tribunal e no recorte dos planos, e malgrado ainda se esteja aqui diante de um espaço complexo, composto de um grande número de figurantes, sabe­ se perfeitamente que eles trocam olhares e gestos entre si por causa da coerência do posicionamento da câmera.

Ninguém melhor do que Griffith encarna o espírito do cinema que se impôs a partir da superação do burlesco inicial e da recuperação moralizante dos nickelodeons. Nome certamente decisivo na promoção de um apuramento sistemático dos recursos retóricos do cinema, o mestre de lntolerance acumula também uma obra de brilho intelectual bastante duvidoso. Griffith sempre incomodou sua legião de correligionários com a arrogância sulina de seus sermões, o racismo indisfarçável, o moralismo provinciano e o ranço de pregador protestante. Toda essa veia conservadora, visível já nos curtas do período Biograph, explode finalmente nessa obra-prima de invenção e reação que é The Birth of a Nation, síntese das principais conquistas no plano da construção de uma linguagem, associada a uma apologia do terrorismo de direita. As inovações griffithianas, apesar de contemporâneas do cubismo e da desarticulação do espaço renascentista na pintura, situam-se todavia numa outra esfera, nada têm em comum com as revoluções que se processam nas artes e na literatura do começo do século; pode-se mesmo dizer que lhes são francamente hostis. Griffith jamais pretendeu problematizar as convenções da representação; ele buscava, pelo contrário, criar uma legislação que permitisse resgatar a produtividade das formas “elevadas” e tradicionais de cultura. Contraditoriamente, no mesmo momento em que extrai o máximo das possibilidades narrativas do cinema, ele constrói também uma obra original e controvertida – lntolerance – que será a principal referência das vanguardas dos anos 20.