5. A contribuição de Griffith pag. 30

O cinema já havia então aprendido com a literatura e com o teatro a alinhavar duas ações simultâneas, mas permanecia ainda o desafio de associar com continuidade dois fragmentos sucessivos de uma mesma ação, ou seja, de produzir isso que nós chamamos hoje de continuidade trajetorial, exatamente o contrário do artifício da montagem paralela. De fato, enquanto a alternação de duas ou mais ações já era conhecida e praticada tanto no teatro como na literatura, a construção de uma série sintagmática a partir de fragmentos de uma mesma ação em um mesmo espaço não encontra antecedentes na história dos meios narrativos, nem mesmo na tradição da lanterna mágica. Daí que Griffith vai preferir multiplicar infinitamente a matriz a-b-a-b em mais de uma centena de filmes, visto que ela não apresentava grandes problemas de decupagem. Ainda assim, a contribuição de Griffith para a consolidação de um modelo narrativo de cinema é inegável. Em primeiro lugar, a interrupção das ações permite introduzir no cinema a técnica do suspense emotivo, já conhecida em outras artes narrativas, mas que terá um desenvolvimento superlativo no cinema. Ademais, o corte exigido pela montagem paralela permite superar o antigo cânone segundo o qual uma cena não podia ser cortada enquanto toda ação nela representada não fosse concluída, ou enquanto todos os protagonistas não saíssem para fora do campo. Os filmes de Griffith vão mesmo beneficiar-se do acréscimo de dinamismo resultante dos cortes praticados em plena duração da ação. Mais que isso: Griffith vai aprender a dar ritmo à ação, abreviando a duração dos planos progressivamente, à medida que se aproxima o fim. Enfim, as ações paralelas vão permitir ainda ao cinema descobrir o papel fundante da montagem como articuladora de sentidos.

Em 1908, conforme já dissemos atrás, Griffith faz After Many Years, uma adaptação para a tela de um poema de Tennyson, que conheceu uma eloquente e célebre refilmagem em 1911, sob o nome de Enock Arden. Este último filme é o trabalho mais acabado de Griffith com montagem paralela, mas também a melhor demonstração de sua superação. Um marido arruinado financeiramente (Enock Arden) deixa a esposa (Annie Lee) e os dois filhos e vai tentar arrumar a vida em outro continente. Durante a viagem, porém, seu navio naufraga e ele é o único sobrevivente que consegue alcançar uma ilha deserta. A partir do naufrágio, o filme passa a jogar com as alternâncias dos espaços respectivos da mulher (que fica na praia esperando pela volta de Arden) e do marido (que fica preso na ilha por vários anos), mas a montagem paralela que faz oscilarem os dois mundos não guarda mais nenhuma das características anteriores de ação frenética, perigo e salvação no último minuto. Trata-se agora de um melodrama assumido, de ritmo lento, onde a montagem paralela tem o papel de intensificar a dramaticidade da situação, através da separação física dos amantes. Uma vez separados, marido e mulher não vão mais ser reunidos no mesmo quadro em nenhum momento do filme. No final, Arden consegue safar-se da ilha, salvo por um navio, e retorna à terra natal na esperança de reencontrar a mulher. Annie Lee, porém, convencida de que o marido já estaria morto, deixa-se cativar por um novo pretendente (Philip Roy) e acaba se casando com ele. Num dos últimos planos do filme, quando o náufrago finalmente reencontra a mulher, ele a vê através da janela, embalando o novo filho (cujo pai agora é Roy) e percebe que tudo está, então, definitivamente perdido. A mulher nem chega a notar sua presença.

O reencontro se dá numa estrutura cinematográfica nova, em vias ainda de consolidação e que corresponde a um aperfeiçoamento da montagem de ações paralelas. À medida que Arden logra escapar da ilha e corre em busca da mulher, os dois espaços alternados (da mulher e do marido) começam a se aproximar, mas quando se dá o reencontro, eles não se fundem jamais num mesmo quadro. Num dos últimos planos do filme, o marido contempla a cena conjugal através da janela. Continuando a montagem paralela que se vinha praticando durante todo o filme, um corte permite saltar para o espaço em que se encontra a mulher e que corresponde justamente ao que o marido vê através da janela. Em outras palavras, no final de Enock Arden, a contraposição de planos se transforma automaticamente na estrutura­ chave do cinema clássico: o campo/contracampo. Esse filme é muito instrutivo por mostrar claramente como Griffith vai passando, de modo gradual, de um modelo ainda descontínuo de cinema, baseado na montagem alternada de ações paralelas, para um modelo “clássico”, baseado na continuidade da ação de um plano a outro. Quando os dois espaços paralelos se encontram na estrutura do campo/contracampo, pode-se dizer que o cinema finalmente logra sucesso definitivo na tentativa de linearizar a narrativa: a contraposição de dois planos contíguos – um representando o sujeito que mira (campo) e outro representando a coisa visada por seu olhar (contracampo) – marca enfim a conquista daquela continuidade espaço-temporal que estava no horizonte da geração cujo empenho maior era elevar o cinema ao nível das belas-artes. O campo/contracampo é a transformação da ação paralela naquela sucessividade espaço­ temporal tão desejada e tão difícil de ser obtida no primeiro cinema.