No processo histórico que conduz ao domínio dos jogos de lugares e olhares que ocorrem no cinema, há dois filmes (produzidos pela Biograph) que ocupam uma posição chave. O primeiro deles é The Story the Biograph Told (A História que a Biograph Contou/1904), pequena peça de simulação de câmera indiscreta. Um cinegrafista ensina um jovem empregado de escritório a operar uma câmera. O objetivo era fazer com que o jovem registrasse furtivamente as cenas que se passavam na privacidade do escritório, onde sabidamente o patrão flertava com a secretária. Um belo dia, o patrão, acompanhado de sua mulher, resolve ir a um nickelodeon para ver uns filmes e eis que, de repente, ele se vê na tela, em plena aventura amorosa com a sua secretária. O jovem empregado do escritório havia filmado tudo, escondido no fundo da sala. Nem é preciso dizer que o filme termina com a punição do infiel: depois de espancar o marido e puxar-lhe os cabelos, em pleno nickelodeon, a esposa traída faz despedir a secretária e a substitui por um robusto datilógrafo. A novidade aqui está na solução engenhosa concebida pelo realizador para produzir uma continuidade perfeita entre o plano de conjunto do casal namorador e o detalhe aproximado do beijo trocado pelos amantes, com mudança do ângulo de visão: a colocação física da câmera no espaço da ação, como um elemento de cena, permitia mudar radicalmente o ponto de vista (da visão frontal inicial para a “subjetiva” do menino no fundo da cena, via câmera), mantendo porém a legibilidade do espaço. A mudança de posição e de distância da câmera produz um efeito surpreendente para o contexto do primeiro cinema: de um lado, Story demonstra que se pode produzir sensíveis deslocamentos do ponto de vista em plena duração da ação e sem que o espectador se “perca” no labirinto de perspectivas, mas mantendo a maior coerência possível na representação do espaço cênico; de outro, Story demonstra também que, na realidade, o cinema não tem necessidade de dispositivos ópticos para “justificar” as aproximações de câmera e as mudanças de ponto de vista, pois a câmera com que se tomam os planos já é esse dispositivo através do qual o filme se faz ver. Para dar o passo seguinte, faltava apenas retirar a câmera de cena, deixá-la invisível, como uma possibilidade pressuposta mas não necessariamente materializada.
O segundo filme-chave para o processo de narrativização em curso é A Search for Evidence, de que já tratamos rapidamente atrás. Apesar das várias cenas visualizadas através dos buracos de fechaduras não formarem aqui nenhuma unidade entre si (e, nesse aspecto, o filme permanece uma coleção de linked vignettes como os demais filmes voyeuristas), A Search coloca o ponto de vista a trabalhar em benefício da narrativa que se está a construir. Assim, o olhar que impulsiona a mulher abandonada e o agente da lei ao desvelamento das cenas privadas é determinado pela ação desencadeada na tela, pela vontade de extrair ilações morais da história e não mais pelo puro e simples desejo da audiência, como expediente para satisfazer a curiosidade escópica diante da cena privada ou proibida. Sintomático dessa mudança de atitude é que, ao contrário do que ocorria em outros filmes de buraco de fechadura, nada do que é visualizado nos vários aposentos inspecionados pode ser considerado anormal, bizarro, cômico ou licencioso, nada a não ser o “crime” da infidelidade, flagrado e denunciado no último quadro.
Talvez não seja apenas uma coincidência o fato de que justamente nestes dois filmes voyeuristas diferenciados a punição final recaia sobre o objeto do olhar (o infiel flagrado em pleno delito) e não mais sobre o voyeur. Na verdade, a punição nos outros filmes voyeuristas não passa de uma atração a mais, ela se destina ao riso e não tem função de extrair qualquer lição de ordem moral. Já neste dois últimos exemplos, a punição tem uma clara função de assepsia institucional: ao invés de castigar física e localmente o infrator, Story e A Search buscam restabelecer a ordem violada, através da substituição da secretária no primeiro caso e da reunião das provas (the evidence) para o divórcio no segundo. A punição, nestes dois casos, é solução narrativa, desfecho fabular, catarse ou seja lá o que for, mas nunca uma gag gratuita, destinada ao riso descomprometido.
Não é também uma coincidência que esses dois filmes tenham sido produzidos pela Biograph, empresa que vai se empenhar mais firmemente do que as outras na construção do processo de linearização narrativa e do discurso moralizante. A Biograph vai produzir ainda muitos outros filmes voyeuristas “domesticados”, à maneira de Story e A Search, sobretudo a partir de 1906. Em Falsely Accused (1907), dirigido por Billy Bitzer, a introdução da câmera novamente fornece provas numa situação de melodrama: acusada falsamente do assassinato de seu pai, inventor de uma câmera cinematográfica, a heroína do filme tem a sua inocência comprovada na corte graças a um filme encontrado na câmera do pai, onde o verdadeiro assassino aparece cometendo o crime. Projetado no tribunal, diante do juiz e dos jurados, o filme-dentro-do-filme revela a verdade do crime, como que redimindo o olhar indiscreto da câmera de suas antigas funções obscenas. A câmera agora está a serviço da narração, ela é testemunha dos fatos arrolados na história, ela os expõe e os interliga, ela extrai dos fatos a sua “verdade”. Por coincidência, o oficial da corte que estende a tela e projeta as imagens da revelação do crime não é outro senão David Wark Griffith, que iniciava sua carreira na Biograph como ator. Não é preciso muito esforço para imaginar como essa cena do cinema como dispositivo de revelação da verdade deve ter calado fundo na alma do futuro diretor oficial da Biograph.