Para os propósitos deste curso, o filme voyeurista vai interessar sobretudo pelo papel que jogou, ao lado do filme de perseguição, na construção do novo modelo narrativo e na preparação do espectador para uma nova experiência do olhar, que hoje chamaríamos de subjetiva. De fato, o filme voyeurista é o primeiro “gênero” cinematográfico a utilizar sistematicamente e com uma frequência que chega a tornar-se significante a aproximação da câmera do ator ou do objeto fotografado. As tomadas destinadas ao quinetoscópio, não o esqueçamos, já eram mais aproximadas que aquelas destinadas ao cinematógrafo, pois pressupunham um visor de “ampliação”, uma lente de enquadramento, através da qual o olho do espectador se posicionaria na cena. É por essa razão que o halterofilista Sandow aparece enquadrado da barriga para cima e o casal lrwin-Rice beija-se num primeiro plano, sem que o público da época tenha estranhado tais imagens. Projetadas na tela grande do cinematógrafo, as figuras de Sandow e lrwin-Rice provavelmente pareceriam “decepadas”, pois lhes faltariam o corpo ou as pernas, mas no quinetoscóplo havia um dispositivo de visualização que “justificava” o enquadramento mais aproximado, como o recorte de uma luneta ou de um microscópio. A aproximação da câmera tem inicialmente um apelo erótico indisfarçável: trata-se de retirar o espectador da posição cômoda mas pouco aventurosa do cavalheiro da plateia (no quinetoscópio, desnecessário dizer, não há plateia, nem poltronas para sentar-se) e colocá-lo “em contato” com os protagonistas, como se lhe fosse possível subir ao “palco” e vivenciar a ação como alguém que faz parte dela. Daí as constantes piscadelas das atrizes diretamente ao espectador. Com a maior proximidade, a colocação do espectador na cena tende a confundir-se com a posição da câmera. Ele, espectador, não se sente mais restringido a uma plateia, a cena lhe parece mais íntima, ele pode quase tocar os protagonistas com os dedos. Melhor ainda: sentindo-se mais “perto”, ele pode ver melhor e sobretudo ver melhor aquilo que de antemão lhe é proibido: a cena privada.
O cinematógrafo logo aprenderá a beneficiar-se também do “efeito quinetoscópio”. De início, não parecia “natural” ao espectador dos vaudevilles que um personagem surgisse “próximo”, enquadrado apenas num detalhe erótico. Uma cabeça em primeiro plano, projetada numa grande tela poderia parecer a cabeça de um gigante, devido às proporções gargantuescas, e ainda por cima uma cabeça decepada do corpo, uma vez que este último não era mostrado no quadro. Méliès soube tirar proveito do estranhamento causado pelo primeiro plano, notadamente em filmes de decepação de cabeças, como L’Homme à la Tête en Caoutchouc (O Homem da Cabeça de Borracha/1902) e Le Mélomane (O Apaixonado por Música/1903).
Mas o detalhe agigantado poderia ser “justificado” por um dispositivo de ampliação, como uma lupa, luneta ou microscópio. E, de fato, no começo do século, o público começa a visualizar na tela do cinematógrafo tomadas “científicas” de motivos supostamente ampliados em microscópio, como aquelas que compõem a série The Unseen World (O Mundo Invisível/1903) de Hepworth e Spiders on a Web (Aranhas numa Teia/1900) de Smith. Neste caso, uma máscara circular negra sugeria o dispositivo de ampliação (o microscópio), mesmo quando tal dispositivo não fora usado para tomar a cena. A máscara circular, nos primeiros anos do cinema, será efetivamente “lida” como indicativa de tomada ampliada e seu uso será rapidamente disseminado na apresentação de primeiros planos.