Retornemos novamente aos primórdios do cinematógrafo e refaçamos o percurso que vai do filme emblemático, burlesco, descontínuo e fundado no quadro primitivo até o filme linearizado e dramatizado segundo as estratégias da nascente indústria do cinema. Vamos ver que entre esses dois extremos situam-se certos “gêneros” e procedimentos intermediários, cujo papel na transição entre os dois modelos de cinema será fundamental. Tal é o caso desse gênero por excelência do período de transição, de grande sucesso comercial no começo do século: o filme de perseguição.
O FILME DE PERSEGUIÇÃO
Vimos acima que, no início do cinema, os primeiros filmes concentravam toda a ação num único quadro fixo de curta duração. Se retomarmos o exemplo do L’Arroseur Arrosé, veremos que Lumière, malgrado filmando em exteriores, encara o quadro visualizado pela câmera como um cubo cênico que “aspira” a ação para o seu interior. Quando o menino, perseguido pelo regador, corre em direção a uma das bordas do quadro, ele é agarrado antes que desapareça no espaço fora do quadro e trazido de volta ao centro, onde é castigado (Lumière não cogitou que o menino pudesse ser castigado lá mesmo onde foi agarrado). Durante as primeiras experiências do cinematógrafo, a perseguição de um personagem por outro resulta num grande problema estrutural, devido à situação estática do quadro cinematográfico (são raros os movimentos de câmera nesse período, sobretudo os movimentos de câmera destinados a acompanhar o movimento dos personagens ou da ação) e à inexistência ainda de montagem, no sentido atual de transição de um plano a outro. Uma vez que os personagens não podiam sair do quadro (porque isso finalizaria o filme), a única solução possível era fazê-los correr em círculo dentro do cubo cênico.
Há um filme de Smith de 1898, Miller and Sweep (O Moleiro e o Limpador de Chaminés), onde essa característica estrutural do primeiro cinema aparece ostensivamente como um problema. Nesse filme, um trabalhador de um moinho de trigo choca-se no centro da tela com um limpador de chaminés, dando início a uma luta corporal. O moleiro, por força de seu próprio ofício, está todo sujo de trigo, portanto esbranquiçado, e leva às costas um saco de trigo. Já o limpador de chaminés, também pela mesma razão, encontra-se enegrecido, e leva às costas, por sua vez, um saco de fuligem. A piada toda se resume no fato de, durante a luta, os sacos de trigo e de fuligem serem jogados contra os portadores adversários, de forma que o moleiro fique preto de fuligem e o limpador de chaminés, branco de trigo. Ocorre, porém, que, não se sabe bem por que motivos (talvez porque não soubesse como terminar a piada de outra maneira), Smith faz um dos antagonistas fugir correndo por uma das bordas do quadro, logo seguido pelo outro. E eles não serão mais vistos, porque logo em seguida acaba o filme. Esse fato talvez possa ter causado uma certa frustração no público, que possivelmente gostaria de ver a continuação da peleja. Afinal, a ação proposta pelo filme ainda não havia acabado. Mas não é só: assim que os dois antagonistas desaparecem numa das bordas do quadro, um grupo de figurantes aparece misteriosamente correndo a partir da borda contrária e cruza a tela em direção ao ponto para onde fugiram os dois primeiros. Para o público da época, não deveria haver dúvidas: eram os curiosos que estavam assistindo à briga, no espaço imediatamente contíguo ao da ação principal (não mostrado) e que saem no encalço dos dois briguentos, para ver no que iria dar toda aquela contenda.