O quadro primitivo

Para se entender a “confusão” dos primeiros filmes, é preciso fazer um exame daquilo que hoje chamamos – um tanto pejorativamente – de o quadro primitivo. Os filmes que se pode considerar mais típicos do primeiro período eram compostos de uma série de quadros autônomos, que correspondiam, por sua vez, mais ou menos aos “atos” do teatro, separados uns dos outros por cartelas onde se lia o título do quadro seguinte. A câmera em geral não se movia; ela estava sempre fixa e a uma certa distância da cena, de modo a abraçá-la por inteiro, num recorte que hoje chamaríamos de “plano geral”. Seu eixo ótico era frontal, perpendicular ao cenário, correspondendo ao ponto de vista cativo de um espectador sentado mais ou menos no meio de uma sala de teatro, ponto de vista que Georges Sadoul identifica como o do cavalheiro da plateia, que vê a cena por inteiro, desde a abóbada até a rampa. As entradas e saídas dos atores eram laterais, como no teatro. Também como no teatro, era o deslocamento do ator para dentro ou para fora do cenário que compunha o quadro e não os movimentos de câmera, por enquanto pouco significativos.

A noção de montagem ainda não havia sido assimilada: mudava-se de cena apenas quando a ação seguinte deveria se passar num outro espaço ou num outro tempo, estando isto devidamente explicado nos intertítulos ou comentado pelo conferencista no momento da projeção. Sendo função das cartelas de intertítulos separar as cenas e anunciar o quadro seguinte, elas nunca eram colocadas em plena duração de um “plano”. Portanto, a passagem de um “plano” a outro (mas ainda não são “planos” no sentido em que hoje se entende o termo) não pode ser considerada uma montagem, mas um truque utilizado como substituto da mudança de cena no teatro.

Apesar disso, não é correto falar em “teatro filmado” a propósito dos primeiros filmes, visto que o cinema, até então, não se inspirava no teatro, o seu modelo era sempre o vaudeville, que não era um teatro no sentido burguês do termo, mas uma espécie de bar por onde os artistas populares podiam circular livremente, sem o constrangimento de um palco. E mais: o teatro burguês, como se sabe, é uma arte essencialmente verbal, enquanto o cinema era mudo. Os intertítulos, é preciso dizer, constituíam um recurso praticamente inútil nos primeiros anos, pois o público dos vaudevilles, na sua maioria esmagadora, era analfabeto. Os intertítulos só vão ganhar sentido no corpo do filme muito mais tarde, quando o cinema começar realmente a cobiçar o teatro, ocasião em que permitirão colocar diálogos na boca dos atores. Sobrava, como único recurso verbal no filme primitivo, a voz do conferencista, esta espécie de sobrevivência degenerada do “coro” grego, cuja intervenção na sala de exibição nunca passou de um ruído civilizante. Ademais, é preciso considerar que o cinema usava e abusava das trucagens fotográficas, como se pode constatar de forma enfática na obra de Méliès, e isso o teatro jamais poderia representar.

Mas havia uma diferença fundamental entre o primeiro cinema e a cena teatral, constatável inclusive nos filmes produzidos em estúdio, que teria importância decisiva na evolução do cinema como processo narrativo: uma vez que as objetivas das câmeras cinematográficas produzem uma imagem em perspectiva, é inevitável que, no cinema, as relações de distância e profundidade sejam traduzidas para a tela plana em termos de tamanho relativo. Assim, quando o palco é convertido em quadro cinematográfico, produz-se um efeito de distância, de diminuição das proporções, tanto mais sensível quanto mais os objetos e seres colocados em cena se aproximam dos cenários do fundo. Considerando que a película da época tinha uma definição muito baixa, o afastamento de seres e objetos significava fatalmente a sua dissolução em manchas ou sombras despersonalizadas, o que, em termos de recepção, significava uma impossibilidade de identificá-los.

Daí a dificuldade que se tinha, na virada do século, de trabalhar de forma significante a profundidade de campo, de dispor os atores ao longo do eixo da perspectiva. A única profundidade tolerável era a “natural”, como a do trem de Lumière que vinha em direção à câmera, mas não aquela composta com vistas à obtenção de um efeito dramático (narrativo). Isso, às vezes, chegava a ser fatal, como ocorria naqueles momentos em que a história ultrapassava as quatro paredes do estúdio e ganhava a rua. Nos exteriores, em que o quadro em geral é mais aberto, as figuras se tornavam cada vez mais indefinidas à medida que iam se afastando da câmera.