3. Características do primeiro cinema pag. 13

Esse fato mostrava aos homens de cinema da época a necessidade de superar a cena teatral, de aproximar mais a câmera dos atores, de fechar o quadro a fim de tornar visíveis e “legíveis” as fisionomias dos personagens. O exemplo mais sintomático dessa preocupação ocorre em The Great Train Robbery: depois de ter rodado o filme inteiro em “planos gerais”, o realizador Porter percebeu que os protagonistas praticamente não eram identificados ao espectador, o que às vezes tornava difícil distinguir entre os bandidos e o pelotão do xerife, sobretudo quando ambos corriam em seus cavalos pelas pradarias. Para remediar esse problema, ele “retratou” um dos bandidos num enquadramento bastante próximo, a fim de permitir à audiência “conhecê-lo”: esse seria um dos exemplos mais remotos de “primeiro plano” aplicados à estrutura narrativa e de rompimento com o quadro aberto inspirado na cena teatral. Só que Porter não sabia ainda o que fazer com esse “retrato” do bandido, não conseguia inseri-lo na contiguidade dos “planos” e, à falta de melhor solução, colocou essa imagem num rolo separado, para que o projecionista a exibisse no começo ou no fim do filme, à sua escolha. Esse primeiro plano primitivo era sintoma de uma necessidade sentida pelos realizadores de reduzir a distância entre a câmera e os protagonistas, mas, ao mesmo tempo, ele exprimia também a dificuldade de inserir na sequência essas aproximações cujo efeito era claramente transgressivo em termos de encenação teatral.

Essa dificuldade de assimilar o plano aproximado à contiguidade da ação narrativa é a causa principal daquilo que nós chamamos hoje a “confusão” do quadro primitivo. A imagem cinematográfica era uma superfície ampla, carregada de detalhes, que o olho do espectador tinha de percorrer mais ou menos aleatoriamente, descrevendo uma trajetória de varredura. O olhar não era ainda dirigido para os pontos que interessavam ao desenvolvimento da intriga, não havia estratégias de ordenamento, recursos de individualização que pudessem separar o significante do não-significante, enfim, faltavam processos de isolamento ou de sinalização capazes de orientar o olho no “caos” do quadro primitivo. Um exemplo de construção tipicamente “confusa” pode ser encontrado na abertura do clássico de Billy Bitzer, Tom Tom the Piper’s Son (Tom Tom, o Filho do Flautista/1905): vemos aí uma feira cheia de gente circulando para cá e para lá, enquanto no primeiro plano, ocupando grande extensão da cena, uma mulher com um provocativo (para a época) collant branco faz acrobacias numa corda bamba. Essa mulher não tem qualquer importância na intriga que se está construindo; ela inclusive vai desaparecer definitivamente a partir do “plano” seguinte. No entanto, ela rouba a cena e não é difícil imaginar que ela deveria atrair para si a maioria dos olhares da plateia, sobretudo da ala majoritária masculina. Aquilo que realmente interessa para o desenvolvimento narrativo do filme – o roubo de um porco e a consequente perseguição do ladrão -­ acaba estrangulado na parte inferior do quadro, quase impossível de se perceber no meio da confusão da cena, pelo menos para um olhar moderno.

Tom Tom the Piper’s Son (Tom Tom, o Filho do Flautista/1905)

Dizemos para o espectador moderno, porque nós já estamos acostumados (melhor seria dizer “alfabetizados”) a ver cada tomada organizada em torno de um centro significante simples e não conseguimos admitir que uma ação complexa como essa possa ser mostrada num único plano. Para nós, essa cena deveria ser construída em fragmentos sucessivos, cada um deles com um significado simples, para que cada tomada pudesse ser imediatamente decifrável pelo espectador, sem ambiguidades e numa primeira olhada. Ou seja, Bitzer deveria nos mostrar primeiro a feira em plano geral, para situar a ação; depois, num plano de conjunto, veríamos o ladrão se infiltrando no meio da multidão e se aproximando do porco; em seguida, já agora num enquadramento ainda mais fechado, o ladrão se aproveitaria da distração dos transeuntes, entretidos com um malabarista que se exibe no centro do quadro, e agarraria o porco; enfim, novamente num plano geral, o ladrão fugiria, escapando por uma das extremidades do quadro, seguido pelo menino dono do porco, que permanece atado ao animal através de uma corda, e por um grupo de curiosos decidido a pegar o ladrão. No cinema moderno, as ações simultâneas precisam ser decupadas, ou seja, decompostas numa sequência linear de fragmentos aproximados e unívocos, a fim de torná-las inteligíveis a um público viciado num sistema de codificação que se tornou dominante.

Pelo fato, entretanto, do filme primitivo não dirigir o olhar do espectador, não se pode concluir que ele era ininteligível. Nos primeiros tempos, os filmes não eram vistos como hoje se vê os filmes modernos. Em primeiro lugar, é preciso considerar que o público dos vaudevilles via os mesmos filmes muitas vezes seguidas e era comum numa única “sessão” repetir várias vezes o mesmo título. Depois, o primeiro cinema, em geral, só utilizava em seus relatos histórias já conhecidas: a história de Tom Tom, por exemplo, deriva de uma rima infantil (misto de canção de ninar e cantiga de roda) cujos versos são conhecidíssimos de qualquer indivíduo nascido em país de língua inglesa. Aliás, “Tom Tom, the piper’s son” é justamente o primeiro verso de uma cantiga popular que continua assim: “stole a pig and away he run” (roubou um porco e saiu correndo), donde a expectativa natural do espectador da época de que, num filme com esse título, alguém deveria roubar um porco. E assim, apesar da imensa “confusão” da cena, os espectadores deveriam estar de olho no menino que carrega o porco no plano mais próximo da câmera, pois certamente ali deveria acontecer a ação principal.