3. Características do primeiro cinema pág. 12

Na última virada do século, a maioria das sequências cinematográficas conhecidas segue mais ou menos o modelo da “Paixão”. O exibidor, de certa forma, era quem “editava” os filmes, a partir de quadros autônomos comprados de um ou de vários fornecedores. Daí a mistura constante de trechos de ficção com registros documentais, daí também a dificuldade que encontramos hoje, diante de várias versões diferentes do mesmo filme, de saber qual seria a mais “autêntica”, ou seja, qual seria aquela concebida pelos próprios produtores, sem interferência posterior dos exibidores. Uma vez que o exibidor era o proprietário de cada quadro isolado (ou seja, de cada “filme”), ele os exibia como bem entendia, inclusive compunha filmes novos, ou seja, novas sequências narrativas, a partir de quadros tirados de outras sequências preexistentes.

Essa situação tipicamente vaudevilesca vai predominar até mais ou menos 1906. A partir de 1907, uma mudança brutal no comércio de filmes inverterá completamente a tendência anterior: os filmes, entendidos agora como sequências rígidas e inalteráveis de planos, passam a ser alugados aos exibidores e não mais vendidos. Com isso, o produtor garante a posse do título e das imagens, além de impedir também que o exibidor possa intervir na sua sequência para “remontá­-la”. Só então o cinema pode começar a se propor o projeto de imaginar formas narrativas estáveis, no sentido hoje entendido como tais.

Mas para que o cinema pudesse aprender a contar uma história, não mais no sentido antigo da lanterna mágica e dos espetáculos de vaudeville, mas no novo sentido agora exigido pela sociedade bem pensante, todo um período de experimentação e aprendizado teve de ser vencido. As primeiras imagens cinematográficas eram consideradas “confusas” demais para um público viciado no discurso linear e organizado do teatro e do romance romântico/realista. Num primeiro momento, a entrada nos nickelodeons de um público “virgem”, de formação pequeno-burguesa, vai solicitar a ajuda de um guia especializado, o conferencista educativo, cuja função principal é explicar o filme. A introdução desse conferencista, pelo menos nos Estados Unidos onde a tendência foi quase generalizada, visava, antes de tudo, “elevar o nível” da clientela, fazendo acompanhar as imagens por uma explicação verbal, a voz detentora do saber e do veredicto moral. Em alguns lugares, a sua presença era imposta por lei, como uma forma de garantir um certo emolduramento civilizante da sala escura.

Mas, sem prejuízo de seu papel moralizante, o conferencista cinematográfico tinha também uma função estrutural mais concreta: cabia a ele colocar ordem no “caos” do primeiro cinema, orientando os olhos dos espectadores para os pontos importantes da imagem em termos de desenvolvimento da narrativa. Para contar uma história, o cinema dependeu, portanto, nos seus primeiros momentos, de um suporte verbal, já que não o podia fazer ainda com os seus próprios meios. Uma grande quantidade de filmes narrativos produzida no período em que o cinema começa a buscar a sua inscrição na instituição das belas-artes foi realizada pressupondo a explicação do conferencista. Um filme como Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás/1903), por exemplo, “adaptação” da novela de Beecher Stowe, é ininteligível sem a explicação do conferencista (a menos que todos os espectadores já conhecessem a história). Ou seja: o cinema não tinha ainda desenvolvido os seus próprios recursos expressivos e precisava contar com a ajuda de um recurso narrativo externo: a voz de um narrador. Contar uma história de forma clara e inteligível, com personagens convincentes e cenários verossímeis, segundo o modelo elevado da literatura, tudo isso revelou-se tarefa mais difícil do que se imaginava.

Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás/1903)