2. O cinema dos primórdios pág. 9

A nascente indústria americana do cinema “cobriu” de forma surpreendente a guerra hispano-americano, simulando reportagens através de reconstituições realizadas com atores nos próprios locais dos acontecimentos. Claro, essas reconstituições eram às vezes mais delirantes que as féeries de Méliès: era comum ver um soldado se precipitando com toda formalidade para tomar a bandeira americana das mãos de um outro soldado alvejado, antes que ele fosse ao chão. E mesmo ignorando esses arroubos de chauvinismo, seria preciso supor uma dose de sorte cavalar para se poder imaginar que o cinegrafista estivesse presente nos locais privilegiados de visualização e pudesse instalar seu equipamento a tempo de tomar as imagens mais significativas do evento, sem risco de acabar cravejado de balas. Ainda assim, depositava-se uma fé quase cega nessas atualidades reconstituídas, se não pelo seu valor documental em si, ao menos pelo poder revelado pelo cinematógrafo de forjar uma realidade “à imagem e semelhança” do seu modelo. A cena do afundamento da frota do comandante Cervera, realizada nos estúdios de New Jersey por Edwin H. Amet, a partir de fotos da baía de Santiago, causou tal assombro pela sua “autenticidade” que, segundo Georges Sadoul, a própria marinha espanhola adquiriu uma cópia do filme para guardá-la como documento histórico.

Durante muito tempo, essas reconstituições foram tomadas pelos compêndios de história do cinema como engodos ou contrafações puras e simples (um dos mais prolíficos falsificadores do cinema, Siegmund Lubin, tem sido normalmente mencionado como o rei dos charlatões), mas a verdade é que elas inauguram uma afinidade que será vital para o novo cinema que se quer construir: a da ficção com o efeito de realidade. De fato, os primeiros filmes narrativos que começam a romper com a cena teatral são em geral reportagens simuladas ou atualidades reconstituídas. No período que vai de 1897 a 1907, a maioria dos filmes registrados no copyright americano são atualidades de tipo diverso e mesmo o clássico de Edwin S. Porter, The Great Train Robbery (O Grande Roubo do Trem/1903), está descrito no catálogo Edison de 1904 como um filme “rodado e interpretado em reprodução fiel aos autênticos ataques de trens que tornaram célebres vários bandos de fora-da-lei do oeste americano”.

The Great Train Robbery (O Grande Roubo do Trem/1903)

A função dessas atualidades reconstituídas não é simplesmente a de enganar o espectador; antes, elas visam revestir a estrutura ficcional de uma aura de autenticidade e colocar o espectador como testemunha ocular dos acontecimentos. Assim, pouco a pouco, os estúdios (americanos e ingleses principalmente) vão substituindo o feérico do filme primitivo pelas “cenas da vida real”, pelos efeitos de transparência e mimese (cópia do real) que vão dar consistência a uma arte do verossímil.